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Medicina fora do consultório...

Medicina fora do consultório...
Leonardo Cardoso
jul. 30 - 6 min de leitura
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Há alguns anos passei em frente a uma livraria e fui atraído pela capa de um livro. Gosto de ler e por isso minha entrada na loja foi, de certa forma, automática. Ao me aproximar do exemplar fiquei apaixonado por sua capa, sua cor e pela sinopse contida em seu verso. Seria impossível deixa-lo lá e quando dei por conta ele já estava fazendo o caminho de casa comigo.

Iniciei a leitura e logo no início fui surpreendido por me ver refletido em um trecho da obra:

            “Um dos prazeres da infância é que sentimos as coisas mais do que as compreendemos. Há grandes lacunas em minha memória consciente, acontecimentos dos quais não me recordo perfeitamente, mas que ressurgem como fragmentos emocionais. Assim, há muitas coisas em minha infância que não posso explicar, coisas que ficaram grudadas na memória sem que eu tivesse pensado muito a respeito. Eis uma delas: sempre quis ser médico. Ainda na escola primária, enquanto os outros garotos sonhavam em ser bombeiros, caubóis ou detetives, eu só queria ser médico. Jamais me questionei nem conversei com ninguém sobre isso. Nunca cogitei outra coisa. Não foi uma sugestão de meus pais, mas acho que eles também presumiram que seria assim. Não houve um único dia em que eu considerasse fazer outra coisa. Era um sentimento, não uma decisão consciente. Simplesmente dei por certo que seria médico. Antes mesmo de saber que tinha um futuro à frente, eu sabia o que faria dele, e ponto final.” (O segredo dos corpos – Vicent Di Maio e Ron Francell)

            Lembro que estava no 3º período do curso de medicina quando fiz a leitura. O tempo passou, muitas coisas aconteceram, mas sempre carreguei comigo a vontade de fazer uma medicina técnica, sem, contudo, perder a humanidade. A vontade de fazer uma medicina mais justa, mais social, mais próxima da alma das pessoas. Entrei no internato e passei a ver quase que diariamente os pacientes em suas necessidades. Vários disseram o quanto os ajudei, mas, na verdade, fui muito mais ajudado por eles.

            Há algum tempo passei por duas situações que me fizeram lembrar desse trecho e de como sempre sonhei em ser médico. Em ambas estava retornando para casa após um dia de estágio obrigatório...

 

Voltando pra casa, entro no carro.

-Boa noite Leonardo. Chega por hoje?

-Boa noite, chega né.

Inicio o trajeto e parece que será mais uma volta. Até que sou questionado sobre o que faço.

-Estou terminando meu curso de medicina.

-Nossa, que legal. E no que vai se especializar?

-Medicina de Família e Comunidade (MFC).

-Seria tipo um clínico geral?

Converso sobre a MFC, suas prerrogativas, sua capacidade de resolver quase 80% dos problemas dos pacientes...

O motorista então me conta sobre um pneumotórax que sofreu há dois anos. Falando de forma simples ele revisa desde o momento em que sentiu dor ao respirar até a colocação do dreno no hospital. Ouço tudo atentamente. Juntos descobrimos sobre o porquê ele teve uma diminuição do fôlego após isso (ele achava que era coisa da cabeça dele, mas depois de me contar sua história ficou claro o motivo). Chego em casa.

-Boa noite. Te desejo muita sorte nessa caminhada. Foi um prazer te conhecer. E que você seja um bom doutor.

-Muito obrigado! O prazer foi meu. E que você tenha muito sucesso.

Em outro dia, passo por uma nova situação...

Entro no carro.

-Você tomou a vacina?

-Tomei sim.

-Ah, você é enfermeiro?

-Poderia, mas estou terminando o curso de medicina

-Ah, então você vai entender.

O motorista me conta que tomou a vacina há cerca de 5 dias e sobre um sintoma em sua perna iniciado no dia anterior. Atribui como sendo reação a vacina e que acha que não vai tomar a segunda dose. A semana está iniciando (e será cheia), o cansaço do dia bate, os atendimentos do dia foram trabalhosos e confesso que queria voltar em silêncio. Mas, poderia eu deixar isso passar batido? Explico sobre as reações da vacina, que alguma outra coisa pode estar causando o sintoma em sua perna e reforço sobre a importância da segunda dose.

-O senhor tem alguma doença?

-Nenhuma.

-Diabetes, pressão alta, ...?

-Ahh doutor, a pressão...

Descubro uma rotina extenuante, uma alta carga de trabalho, horários de sono bagunçados, sintomas físicos presentes... Um possível quadro de hipertensão, com chances de urgência hipertensiva em alguns momentos? Explico o que pode estar havendo, oriento sobre a procura de atendimento em caso de algum sinal de alerta e peço que nos próximos dias ele procure um médico levando um MRPA (instrumento de controle dos valores pressóricos).

-Sabe que esses dias eu fui num médico e ele me disse essas coisas. Mas, nunca ninguém tinha me explicado assim. Aí fui deixando. Mas, vou fazer certinho e ir ao médico.

-Se eu tivesse meu consultório ia falar pro senhor ir fazer uma consulta comigo, mas como ainda falta um pouquinho, vou pedir pro senhor ir ao médico.

-Você poderia anotar meu telefone?

-Posso sim (respondo, meio ressabiado).

-Quero ir no seu consultório quando você abrir ele.

Ele ainda me questiona sobre o valor da consulta antes de encerrar a corrida e me faz a promessa de que falaria para todos os colegas motoristas irem fazer uma consulta quando abrir meu consultório. Me despeço e entro em casa rindo.

Essas duas histórias vividas me fizeram compreender ainda mais que existe uma diferença entre cursar medicina e ser médico e sobre a importância de estarmos sempre prontos para exercermos o que escolhemos para nossa vida. Me mostraram, ainda, que é sobre gostar do que se faz. É sobre a vida nos presentear. É sobre nos permitirmos sermos tocado. É sobre ser apenas uma alma humana quando se toca outra alma humana.

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