Cheguei para mais um dia de trabalho. Sentei, liguei o computador, abri o prontuário eletrônico. Minha supervisora vem ao meu lado e pede que eu ligue para uma paciente cujo caso se apresentava de forma mais complexa que o habitual.
Tomo nota de alguns detalhes. Descubro que perdeu o filho há poucos dias. Respiro fundo. Enquanto aguardo por um “alô” penso no que falar. Nada me vem a mente. Não sabia, mas já não estava mais pisando em terreno racional.
-Alô?
O filho atende a ligação. Me identifico e pergunto por sua mãe. Ele diz que passará o telefone para ela.
-Boa tarde, D. Ester?*
-Sim.
-D. Ester, meu nome é Leonardo e falo em nome da Secretaria Municipal de Saúde, tudo bem?
Um tudo bem dito apenas como forma de introduzir a conversa. Já sabia que não deveria estar.
-Tudo meu filho. Na verdade não.
Ester esboça um choro, mas se segura.
-Primeiramente quero dizer para a senhora que estou aqui para ouvi-la neste momento.
Consigo perceber pela ligação que ela começa a deixar escorrer algumas lágrimas.
-E quero me colocar, em nome da secretaria, a disposição da senhora neste momento.
Alguns segundos de silêncio antes que Ester comece a me contar os últimos acontecimentos.
Ela me fala sobre a internação do filho, a descoberta que ele estava com coronavírus, os momentos que passaram juntos e sobre o dia em que ele partiu. Conta-me que seu outro filho veio para cá para cuidar dela na última semana e que no dia em que conversamos haviam feito o teste para pesquisa da Covid-19. O dele negativo. O dela positivo.
-Meu filho, estou com medo. Estou com alguns sintomas. Tenho medo de piorar. Medo de contaminar meu filho. Medo de morrer. Medo de perder ele. Eu acabei de perder um filho.
O número de ligações aumentou na central de atendimentos onde tenho atuando durante a pandemia. Cada vez mais se faz necessário um direcionamento dos pacientes para que possamos atender o maior número possível de pessoas e assim garantir ao máximo que as dúvidas sejam sanadas, os casos identificados e os diagnósticos confirmados. Mas, nesse momento, esqueço de tudo o que está ao meu redor. Apenas D. Ester e sua história me interessam. Essa ligação é diferente de todas as outras que recebi nos últimos meses.
-E D. Ester, no que eu posso ajudar a senhora hoje?
-Eu queria muito passar por uma consulta e fazer uma chapa do pulmão.
Pergunto sobre problemas de saúde, confirmo os sintomas e algumas informações necessárias. Pego seu número de telefone e digo que irei buscar juntamente com o restante da equipe uma solução para seu caso e que na sequência volto a ligar para ela. Recebo um agradecimento e desligo o telefone.
Converso com minha supervisora que liga para sua chefe e me passa a ligação. Explico o caso e após decidirmos como ajudar Ester volto a ligar para ela.
-D. Ester?
-Sim.
-É o Leonardo que estava conversando com a senhora.
-Sim, meu filho.
Explico a ela como conduziremos a situação e como iremos ajudá-la. Após as explicações ela me agradece. Insiro ela em nosso sistema de monitoramento, realizo as orientações pertinentes...
-D. Ester, quero novamente colocar nosso serviço a disposição da senhora. Pode ficar a vontade para ligar pra gente se precisar.
-Muito obrigado, meu filho.
-E D. Ester, eu queria dizer pra senhora que não posso dizer que imagino o que a senhora está sentido, porquê eu acredito que apenas uma mãe que perde um filho pode mensurar essa dor...
A senhora do outro lado da linha começa a chorar. Um choro sincero. Um choro doído. Um choro que só me faz pensar em como queria abraçá-la neste momento.
-Mas, eu quero dizer pra senhora que eu estou aqui se a senhora precisar. Quero que a senhora saiba que nesse momento eu peço que Deus esteja confortando seu coração e dando a força necessária que a senhora precisa pra continuar.
-Ai meu filho, dói muito.
-Eu compreendo.
Chorando ela me diz que questiona o porquê de tudo isso, se foi ela que passou a doença ao filho, o porquê de Deus não ter levado ela no lugar dele.
-Eu entendo a senhora. E é normal todas essas dúvidas surgirem. E o que eu quero dizer pra senhora nesse momento é que se tem uma coisa que tenho aprendido ao longo dessa caminhada que escolhi é que nada acontece por acaso. Às vezes acontecem coisas que não entendemos na hora, mas acredito que tudo tem um motivo. E eu acredito que seu filho está num lugar tranquilo agora, em paz, e que um dia vamos todos nos encontrar.
-Meu filho era muito espiritualizado. Muito bom.
Aos poucos ela vai parando de chorar. Vai ficando com a voz um pouco mais tranquila.
Queria abraçá-la, oferecer apoio, acolhe-la. Queria que ela não estivesse chorando a morte de um filho. Queria que muitas coisas fossem diferentes. Mas entendo que não temos esse controle. Conversamos mais um pouco e quando percebo que a senhora está mais calma pergunto:
-D. Ester, se a senhora me permitir, posso colocá-la em minhas orações?
-Pode sim meu querido. Você faria isso?
-Farei sim. É uma forma de estar perto da senhora neste momento em que não podemos estar tão próximos e nos abraçar.
-Ah, meu querido. Muito obrigado mesmo! Foi tão bom falar com você. Que Deus abençoe você, sua caminhada, seu trabalho.
-Eu peço que Ele esteja aí com a senhora. Se precisar de alguma coisa pode ligar pra gente, tá bem?
-Pode deixar que ligo sim.
Nos despedimos e quando desligo o telefone um turbilhão em minhas emoções ocorre dentro de mim. Começo a escrever algumas informações sobre a senhora com a qual acabei de conversar para passar para minha supervisora quando algumas lágrimas tentam sair por meus olhos. Seguro, respiro fundo e continuo escrevendo.
Nem sempre podemos dar vazão a nossas emoções no exato momento em que elas vêm. Há vários outros pacientes aguardando por um atendimento do outro lado da linha. Mas, mesmo não dando vazão, passo o restante do dia pensando na senhora.
Saio do trabalho e continuo pensando em D. Ester. Existem alguns pacientes que mexem com a gente de forma especial. Cumpro algumas tarefas do dia sem perder sua história de vista. E quando sento para escrever sobre sua história e registrá-la junto com as outras que marcaram essa caminhada dou vazão as minhas emoções. Deixo que as lágrimas escorram.
Lembro dos meses em que acompanhei D. Júlia e de como chorei enquanto escrevia a história Uma estrela no céu. O mesmo ocorre quando escrevo sobre Ester. Choro por ela. Choro por sua perda. Choro por não poder abraçá-la. Simplesmente choro. E peço apenas que Deus lhe dê força, consolo e que a abrace por mim.
*Nome fictício. Sempre respeitando as condutas de proteção dos dados do paciente.
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