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Receita do desastre #1: Johnny Cash

Receita do desastre #1: Johnny Cash
Henri Hajime Sato
set. 23 - 9 min de leitura
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Bem-vindos à série "Receita do desastre". Te convidamos a aprender que a morte e a doença são iguais para todas as pessoas, inclusive para aqueles que em nossa memória são eternos: nossos ídolos. Você vai conhecer as histórias de famosos como Johnny Cash, Janis Joplin, Amy Winehouse, Kurt Cobain, Ernest Hemmingway, Eric Clapton, Josef Mengele e mais alguns que morreram de forma inesperada, porém anunciada por seus históricos.

Se prepare para conhecer esses personagens e perceber que apesar da fama e do dinheiro, a falta de saúde mental pode levar qualquer um à ruína. 

#1 Johnny Cash

Imagine você em um pronto socorro, aparece um vovô deprimido porque perdeu a esposa há meses, que tem histórico de alcoolismo, hipertenso, diabético e com insuficiência cardíaca. 

Parece até um daqueles casos tediosos que você ouve em aulas da faculdade ou até mesmo banal, não é? 

E é comum mesmo. As complicações cardiovasculares podem ser consideradas uma das mais comuns de ida ao PS e de óbito em idosos. 

Porém e se eu te disser que você teria como paciente uma das maiores lendas da música e da cultura pop? 

Então prepare a Quetiapina, o Rivotril e o álbum “American IV: The man comes around” porque o tema do primeiro episódio do  “Receita do desastre” é um dos meus artistas favoritos: Johnny Cash

Para vermos o caso clínico de Johnny Cash temos que analisar sua infância, sucesso, declínio e renascença. 

O menino “John” 

Johnny Cash nasceu numa família extremamente pobre no meio do Arkansas (sem Ar Kan Saw,por favor) e desde criança já trabalhava como colhedor de algodão e como costume adotado dos escravos afrodescendentes, cantava enquanto trabalhava (o que vale um livro de história inteiro, pois era o meio de comunicação secreto entre os escravos). 

Seu pai era alcoólatra e agredia sua mãe, seus irmãos e para dar um tom mais depressivo, ele sentia culpa pelo seu irmão mais velho ter morrido em um trágico acidente de trabalho. 

Então temos aqui uma criança com um caso clássico de abandono familiar, trauma, culpa, saúde social negligenciada, histórico de acidente ocupacional e um fator que muitos médicos ou adotam em exagero ou não veem: A espiritualidade. 

A espiritualidade foi tão importante como um antidepressivo ao Johnny Cash que qualquer crítica ao artista sendo positiva ou negativa sempre menciona que “Johnny Cash é espiritual”, justamente por suas músicas terem um fator gospel-depressivo muito forte. 

Lembrando que o conceito de "adulto", "criança" e "saúde mental" naquela época eram bem diferentes e, logicamente, até mesmo a medicina mental arcaica daquela época era um luxo que os pobres não tinham.  

O cantor John 

No serviço militar ele ganhou três marcas registradas: 

  • O nome "John" em sua farda, pois se recusava a usar iniciais 
  • O aprimoramento do violão a ponto de compor um sucesso “Folson Prision Blues” 
  • Uma marca no rosto por uma cirurgia para retirar um cisto (e teve gente achando que foi briga de bar) 

O detalhe médico é a marca no rosto. Como nós sabemos, o rosto é cheio de vasos e nervos e consequentes abordagens desse cisto causaram problemas a sua saúde física e mental (guarda essa informação aí, o R1!) 

O nascimento de “Johnny Cash” 

Após servir o exército, resolveu se dedicar à música se mudando para Memphis (sim, a mesma cidade do Elvis e o lugar que sonho em conhecer), passando a vender ferramentas e estudando para ser radialista. 

E você pensava que um talento para qualquer coisa vem de nascença, principalmente medicina. Talento vem da nossa vida, esforço e sorte de sobreviver e manter a saúde mental.  

O que é interessante é que Johnny Cash não tinha cara de beato ou “crente”, tinha cara de mau, era subversivo e a cicatriz no rosto o deixava parecendo um bad boy. Aquela foto clássica dele mostrando o dedo do meio mostra bem o seu marketing.

Correndo atrás da carreira, sua principal marca foi a mais criticada, que foi sua espiritualidade. Johnny Cash cantava, em tons quase teológicos, a existência da vida, o sentido de adoração a Deus, Jesus cristo, o Apocalipse e era tão exagerado que o dono da gravadora disse, segundo biógrafos: 

“vá pecar e depois me retorne com uma música”. 

E começou seu sucesso e sua carreira musical plena. 

Mas aqui é medicina e já dissertei sobre a espiritualidade na medicina, então voltemos ao caso clínico. 

A ascensão e queda. 

Artistas têm um ritmo frenético para fazer shows e não era incomum o uso de drogas.

E para compensar essa vida de artista e o péssimo histórico pessoal, ele começou a se viciar em álcool, anfetaminas e barbitúricos, interferindo até em seu comportamento de pessoa calma e triste para um homem agressivo, agitado e impaciente. 

(Me recuso terminantemente ficar horas dissertando sobre as atuações de inibição frontal, das amígdalas do SNC ao uso de drogas, leia um livro de farmacologia).

Por ironia esse fator estimulante das anfetaminas o deixou mais produtivo e criou o hit que conheci primeiro. “Ring of fire” um estilo country frenético (KDST do GTA San Andreas). 

E ainda tinha o marketing de fora da lei e subversivo para a época (como disse, a cicatriz dava uma impressão de briga de bar), mesmo que, até então, nunca tivesse sido preso. 

Até o dia em que ele foi preso por traficar anfetaminas para o México em sua caixa de violão (a polícia achava ser heroína inclusive, o que lembra a Janis Joplin, mas esse é outro assunto).  E outra vez que foi preso por invadir uma propriedade privada para pegar flores. 

Incrivelmente, mesmo com aquele perfil bad boy, tínhamos uma pessoa extremamente empática com os menos afortunados e párias, ia cantar voluntariamente nos presídios dizendo que o sistema prisional era injusto e que só prendia pobres, latinos, afrodescendentes e indígenas. 

E ganhou a fama de ser “o homem de preto” porque sempre usaria botas pretas enquanto houvesse injustiça no mundo. 

E antes que me digam que ele era lacrador, era membro da NRA (uma famosa organização de direita pró-armas) e defensor das armas. 

A queda de Cash foi a prova de como a doença engole o paciente: um acidente com os filhos de um amigo muito próximo, o vício e, por fim, tentou suicídio, sem sucesso. 

Mas a volta por cima veio com um romance controverso com June Cash, com quem viveria casado até o fim da vida dela, como é visto no filme Johnny e June(com Johnny Cash interpretado pelo Joaquim Phoenix...meu Deus como esse cara tem vocação para fazer papel psiquiátrico!!!) 

E foi nesse período “limpo” que ele começou a produzir uma série de álbuns, que são meus favoritos, com a voz rouca pela idade, que transmite o sofrimento e a sua espiritualidade. 

Como o cover de “Hurt” do nine inch Nails que até o autor original disse, “essa música é dele, não é mais minha” 

 

E o cover de “one” que fez o one do U2 passar vergonha, (lembro que pensava nessa música quando tive que encarar a morte de uma paciente que estava sob meus cuidados na faculdade que retornou somente para cuidados paliativos exclusivos com câncer terminal). 

Mas como eu disse, a doença engole o paciente, diabético pelos péssimo histórico de estilo de vida, a falta de cuidados, a idade avançada, sequelas de pneumonia, o uso de drogas e a dependência de opióides por abordagens cirúrgicas em sua cicatriz (lembra que eu disse acima para guardar essa informação?) resultou em sua morte por insuficiência cardíaca causada por uma neuropatia diabética rara do sistema nervoso autônomo.  

Então temos a receita do desastre: 
1. Abandono familiar 
2.Acidente de trabalho de seu irmão  
3.A depressão controlada pela espiritualidade 
4.O vício em drogas 
5. Os acidentes que presenciou 
6. O diabetes e a hipertensão 
7. O uso de opióides pela dor ocasionada pela lesão em seu rosto 
8. As neuropatias que o atingiam ao cantar e dedilhar no violão e sua performance 
9. A morte de sua esposa 
10. Sequelas de uma pneumonia de um paciente de alto risco(Nem preciso fazer o CURP 65) 
10. E as complicações do diabetes e da icc 

E como isso afetou este que vos fala? 

Johnny Cash é espiritual. Para mim é um daqueles artistas que envelhecem bem(na minha opinião somente ele, Bruce Dickson, o BB King e o Eric Clapton conseguiram).

Encontro em sua voz mais velha e grave os conselhos de um avô a um neto. Explicando porque Deus fez as coisas, porque as pessoas são assim, porque somos e de onde somos (sim, estou falando de Personal Jesus)

Quando eu ficava deprimido no internato, depois de formado indo ao PS e na residência que passei um perrengue, a música “The man comes around” me dava conforto assim como um cristão encontra em um hino.  

Aliás, essa música me faz pensar em Deus andando em um hospital, feliz por uma vida nova, guiando os que passam e consolando quem fica. Tanto que quando vi o Filme Logan no cinema, a estaca no coração foi ouvir essa música nos créditos, pois como já disse Johnny Cash é espiritual. 

 

Va em paz homem de preto, vovôzinho do PS, que você tenha achado seu pedaço de paz.  

Obrigado pela companhia, até os próximos episódios!

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