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COVID e o fim vida: a videochamada como forma de diminuição da distância dos pacientes terminais - Parte 1

COVID e o fim vida: a videochamada como forma de diminuição da distância dos pacientes terminais - Parte 1
Maria Clara Malta
nov. 10 - 15 min de leitura
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O presente artigo baseou-se integralmente em pesquisas bibliográficas, notícias vinculadas a sites de grande circulação, artigos da literatura jurídica, médica, filosófica e psicológica nacional, além de utilizar reflexões do ordenamento jurídico  como argumentação às teses expostas, a fim de se elucidar os direitos dos pacientes, especialmente daqueles que se encontram internados e impossibilitados de estarem nesse momento tão delicado junto aos seus familiares devido a pandemia do coronavírus.  

A relevância do tema comprova-se em contraposição ao parecer divulgado   no final de abril, pelo CREMESP, o qual afirmava que o paciente intubado não tem condições de expressar seu consentimento para aderir à chamada e interagir com parentes. O mesmo considerado como uma "opinião" foi direcionado à uma médica especialista em tratamentos paliativos, o qual orientava-a não mais utilizar da prática das visitas virtuais, sob o argumento que seria absolutamente proibida a exposição do paciente. A médica que adotou e adota em seus plantões tal prática, segue lutando na tentativa da criação de um projeto de lei que autorize a realização das videochamadas com seus pacientes em estágio terminal e de recuperação da doença quando esses encontram-se internados com o vírus e outras doenças terminais. 

Diante o cenário atual pandêmico devido a COVID-19, os governos definiram novas regras nos ambientes hospitalares, afim de diminuírem a transição de familiares nos hospitais na intenção de reduzir os riscos de contágio.

A partir de então, profissionais da linha de frente dos hospitais começaram a se reinventar e criaram novas formas de comunicação entre os pacientes e seus familiares. De acordo com a situação apresentada acima, o presente artigo visa explanar a necessidade da realização de videochamadas como importante fator de cura e auxílio direto na recuperação dos pacientes tendo em vista as restrições impostas pela pandemia.

Nesse contexto, destaca-se, o direito de seguir a vontade do paciente, que deve ser sempre ponderada e respeitada, visto que, muitas vezes, doenças (inclusive da COVID-19) que afligem esses pacientes retiram-lhes não apenas a esperança e a qualidade de vida, mas também lhes destituem a dignidade e a privam de estarem com seus familiares em um momento tão delicado. 

A vida, a qual protegemos e prezamos, de forma absoluta e inconteste, não é qualquer vida, mas sim a vida digna, já que não há dignidade em sofrimentos incessantes e contínuos que fazem com que os pacientes passem seus dias à base de sedativos e assim fiquem desprovidos da realidade, o que, não apenas lhes causa grande sofrimento, mas também desestrutura toda a sua família. Portanto, faz-se extremamente necessário estar em contato com aqueles que mais amamos em momentos tão delicados, a partir de então, preserva-se o respeito da vontade concreta dos pacientes que se encontram privados do contato pessoal com seus familiares que, com base na dignidade da pessoa humana, possuem o direito à vida, morte digna e a diminuição do sofrimento durante a internação.

Leia mais: A humanização no atendimento médico e suas consequências na cura do paciente

O contato entre a família, o paciente e a equipe hospitalar proporcionam o atendimento de forma humanizada, reforça os vínculos e traz segurança para os parentes que estão do outro lado angustiados por notícias. A comunicação é primordial entre os envolvidos e permite a equipe conhecer melhor o paciente e proporcionar um atendimento que vai além da relação clínica e sim humana.

O presente artigo tem como argumento principal a defesa no que tange a realização das visitas virtuais hospitalares, especialmente para pacientes sedados e em coma, contaminados pela COVID-19 que se encontram em situação de extrema vulnerabilidade e necessitam do mínimo para diminuir as consequências da internação e solidão.

As Videochamadas como garantia os direitos do paciente.

Nos leitos hospitalares, diariamente pacientes com COVID-19 ficam isolados e internados em uma ala restrita, os quais podem contatar apenas com os profissionais que atuam na linha de frente de combate ao vírus. Para evitar contaminações, visitas não são permitidas, aumentando a saudade dos entes familiares, amigos e intensificando sensação de solidão.

É nesse contexto e baseado no Princípio da Liberdade, autonomia e da inviolabilidade do direito à vida é que se defende paulatinamente o direito do paciente de se beneficiar das videochamadas com seus familiares quando este fica impossibilitado de receber visitas.

Somos parte de uma sociedade garantidora dos direitos humanos, a qual visa proteger a vida e garantir os direitos do homem em sociedade, principalmente quando este encontra-se em situação de vulnerabilidade. Falamos aqui em situação do homem-vulnerável durante processo de contaminação pelo coronavírus e em fase de adoecimento.

Compreende-se o processo de adoecimento como uma situação única vivida pelo paciente em suas especificidades, atravessado por relações familiares, histórico de experiências, posições subjetivas, estratégias de enfrentamento do paciente, dentre outros.

A presença de acompanhante e realização de visitas ao paciente durante a internação hospitalar são fatores que compõe a etapa do enfrentamento do paciente e da família à situação de hospitalização. Tendo em vista as restrições supracitadas, de circulação de pessoas em ambiente hospitalar, é preciso adaptar-se a formas alternativas de familiares e pessoas importantes para o paciente estarem próximos de alguma maneira. Nesse sentido, a comunicação por celulares e tablets, são um método de extrema importância para aproximar pacientes, parentes e equipe médica e, ao mesmo tempo, respeitar o distanciamento social.

A videochamada constituiu-se como potente ferramenta para promover e fortalecer a ligação afetiva entre o paciente e os membros da sua rede socioafetiva, minimizando o impacto e os riscos que as restrições de visita causam no bem-estar psicossocial do sujeito internado e entes queridos.

Os pacientes podem se beneficiar da comunicação na medida em que ficam disponíveis para expressarem suas emoções e aflições com a garantia que alguém de sua confiança está lhe ouvindo; sentimentos de tristeza advindos da separação devido à hospitalização e isolamento pela pandemia, bem como a angústia e o estresse inerentes ao contexto de enfrentamento do tratamento fazem parte diariamente da rotina daquele que se encontra hospitalizado.

Nesse sentido, os familiares realizam contato trazendo conversas confortáveis e encorajadoras aos pacientes, e mutuamente tranquilizam suas preocupações e indagações, fortalecendo os pacientes com palavras de incentivo. 

Ainda, há que se falar no envio de notícias e boletins através das chamadas eletrônicas, onde a comunicação entre médico e família do paciente se estreita trazendo maior segurança para aqueles que estão em casa aguardando notícias dos seus entes.

O uso da tecnologia trás comprovadamente uma melhora na recuperação do paciente e no bem estar dos seus familiares.

O CREMESPe a videochamada

O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) divulgou um parecer, proibindo vídeo e telechamadas entre pacientes intubados, sedados ou em coma no estado, afirmando que, nestas situações, o paciente não tem condições de expressar seu consentimento para aderir à chamada e interagir com parentes.

No mesmo, o Conselho manteve regras de 2016 da própria entidade regional que proíbem a realização de chamadas, filmagens ou conversas de vídeo entre pacientes internados em unidades de terapia intensiva (UTIs) e salas de emergência.

A Resolução nº 347, de 29 de abril de 2021, constitui uma extrapolação do poder normativo do CREMESP, em dissonância com o princípio da legalidade, contido no inciso II do art. 5º da Constituição Federal de 1988, na medida em que dispõe de matéria que ultrapassa tal poder, ao fixar critérios e restrições para a fruição dos direitos dos pacientes. O documento, no entanto, é considerado completamente obsoleto, e causou grande revolta entre profissionais da saúde.

A justificativa exposta em nota adicional emitida após intensa pressão foi que o parecer trata apenas de uma opinião e não tem força de lei. 

A edição dessa Resolução pelo CREMESP extrapola seu poder normativo e não se coaduna com os ditames do Estado Democrático de Direito, porquanto o Conselho Profissional de Medicina não tem competência legal nem legitimidade para regular privacidade, consentimento informado e decisões substitutas de pacientes, matérias que, por evidência, se encontram no espectro do Direito do Paciente.

Após intensa indignação dos médicos e da população, o parecer ganhou nova interpretação, e foi penas uma opinião que pode ser desconsiderada, que pode ser questionada. (ARANTES. 2021)

E após grande efeito acerca de tal opinião, o CREMESP, em maio de 2021, institui nova Resolução voltada a respeitar a decisão do paciente sobre o uso das videochamadas: 

A autonomia do paciente em decidir sobre práticas médicas que serão ou não realizadas em seu corpo, após devidamente esclarecido, é uma conquista da Medicina moderna. O mesmo princípio bioético se aplica ao uso da imagem do paciente, que deve ser o real detentor do poder de autorizá-lo ou não. A garantia de tal direito é o ponto central de Resolução n° 347 publicada pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) em 05/05/2021.  O documento se destina a orientar os médicos do Estado sobre o uso ético das videochamadas, permitindo a interação entre pacientes e seus familiares em situações que impossibilitam o contato pessoal entre eles em hospital – como as surgidas em virtude de uma pandemia. Contudo, também reforça que direitos humanos fundamentais e constitucionais nunca podem ser menosprezados, ainda que seja em fase de sobrecarga à saúde pública, como a gerada pela magnitude alcançada pela COVIS-19.  Por isso, atrela a “visita por videochamada” ao respeito à privacidade do paciente e dos demais que compartilham a mesma unidade de internação, assim como empodera o paciente para que seu desejo quanto ao uso ou não de sua imagem seja conhecido mesmo quando venha a ficar impedido de opinar.

Em que pese a alegada preocupação do CREMESP com o direito à privacidade do paciente, que se desdobra no direito ao consentimento informado, no direito à confidencialidade dos seus dados pessoais, no direito à visita e no direito à imagem, não compete a Conselhos Profissionais de Medicina dispor sobre como os pacientes irão exercer seus direitos nos serviços de saúde. Mas, tão somente regular a atuação dos profissionais médicos.

Ademais, ressalte-se que a realização de visita por videochamada não é um assunto médico, mas sim uma expressão do direito à privacidade do paciente, que tem a faculdade de escolher a pessoa com quem deseja se comunicar e o modo pelo qual deseja realizar tal contato. Com efeito, nos casos em que não for possível a família estar fisicamente com o paciente, seu bem-estar emocional e psicológico deve ser preservado virtualmente por meio da videochamada. Ainda, do ponto de vista dos direitos dos pacientes, a realização de videochamada também decorre do direito do paciente ao cuidado em saúde de qualidade.

A origem do parecer foi o questionamento de um médico, considerando o momento de restrição de visitas hospitalares, sobre haver impedimento ético para realizar videochamadas de pacientes internados (conscientes ou não) a fim de permitir a interação com seus familiares.

A resposta do CREMESP, em síntese, condenou a prática, entendendo possível somente quando autorizado pelo paciente, o que o posicionamento traduz dois pontos relevantes da ligação entre médico e paciente: o primeiro deles, a privacidade do paciente e o segundo, o sigilo médico. Trata-se de preceitos fundamentais, porém, é preciso saber quando aplicá-los, tendo em vista que cada situação exige sua particularidade, não há que se falar em uma postura única e certa a ser seguida em todos os casos.

De acordo com o que dispõe o Conselho, privacidade e sigilo médico só podem ser relativizados: a) pelo consentimento do paciente; b) por dever legal; ou c) por motivo justo, conforme o Código de Ética Médica (CEM), que, para o CREMESP, seria o interesse público.

No que tange ao dever legal, realmente, não há tipificação instruindo e obrigando o médico a realizar videochamada. Mas pretender que haja uma é contrassenso, vez que a situação em debate é inédita e o Direito não acompanha a velocidade de evolução tecnológica. Também não há que se falar em uma lei específica proibindo o ato.

Independentemente da existência ou não de uma lei, é importante considerar as regras, mas antes de tudo é preciso posicionar-se acerca de valores, tendo em vista que o paciente deve ser exposto a situações que garantam 100% sua dignidade e principalmente, sua humanidade.     

Portanto, quando o paciente é colocado a frente de doenças que ameaçam sua vida, como por exemplo, a covid-19, o tratamento humanizado, deve ser primordial, visando assim, a garantia e efetividade dos princípios que regem a vida. Melhorar a qualidade de vida, e influenciar positivamente seu curso, integrar aspectos psicológicos e espirituais no cuidado do paciente, bem como auxiliar familiares por todo o curso da doença e no enfrentamento do luto faz parte de um tratamento humanizado e prioritário na área da saúde.

É neste cenário que as videochamadas promovem o contato entre família e paciente, enquanto assegura o interesse público de salvaguardar a saúde e a vida pela não circulação de visitas nos hospitais.

Leia mais

Referências

Arantes, Ana Claudia. O Cremesp e as chamadas em vídeo para pacientes com Covid-19: O outro lado. Veja. 2021.  Disponível em:  Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/letra-de-medico/o-cremesp-e-as-chamadas-em-video-para-pacientes-com-covid-19-o-outro-lado/. Acesso em: 27 jul. 2021.

Longo, Cristina Alves. Direito a boa morte: Uma possibilidade sob à ótica da dignidade da pessoa humana. JUS. 2021.  Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83568/direito-a-boa-morte. Acesso em: 27 jul. 2021.

MAIS LAUDO. Medicina e Tecnologia: os benefícios dessa relação para instituições de saúde. Mais Laudo. Minas Gerais, 2019.  Disponível em: https://maislaudo.com.br/blog/medicina-e-tecnologia/. Acesso em: 27 jul. 2021.

 Maria Fortaleza Teixeira Ficher, Ana et al. Video chamadas: aproximando paciente, família e equipe durante a internação em tempos de pandemia de COVID-19. REVISTA QUALIDADE HC, São José do Rio Preto, 2020.  Disponível em: https://www.hcrp.usp.br/revistaqualidade/uploads/Artigos/312/312.pdf. Acesso em: 27 jul. 2021.

SB BIOETICA. NOTA SOBRE A RESOLUÇÃO Nº 437. Brasília, 2021.  Disponível em: http://www.sbbioetica.org.br/uploads/repositorio/2021_05_17/NOTA-SOBRE-A-RESOLUCAO-N-347.pdf. Acesso em: 27 jul. 2021.

Souza, Ana Célia. CONSCIENCIA DA MORTE E TECNOLOGIA. Slowmedicine. 2020.  Disponível em: https://www.slowmedicine.com.br/consciencia-da-morte-e-tecnologia/. Acesso em: 27 jul. 2021.


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