O termo “terapia digital” (digital therapeutics, em inglês e mais assertivo ao que se trata do que em português) já existe faz alguns anos, definido como: “tratamentos comportamentais baseados em evidências entregues on-line que podem aumentar a acessibilidade e a eficácia dos cuidados de saúde”.
É incrível ver que agora existem dezenas de startups e investidores que continuam a criar terapias digitais para tratar dores crônicas, depressão, ansiedade, asma e outras condições. A primeira parte da missão da saúde digital – aumentar o acesso aos cuidados – está sendo progressivamente alcançada.
A terapêutica digital é intrinsecamente projetada para ser escalável por meio da tecnologia. Enquanto o ensaio clínico original do Programa de Prevenção do Diabetes (DPP) registrou 1.079 participantes em 28 cidades em seu braço de tratamento de estilo de vida, os DPPs on-line podem inscrever vários milhares de participantes em uma única semana.
Ao inscrever empregadores, pagadores e sistemas, dezenas de milhares de pessoas podem obter acesso a terapia digital da noite para o dia, recebendo um e-mail no dia seguinte para se inscrever e inscrevendo-se no tratamento no final da semana. O software está comendo o mundo e fazendo o mundo parar (mais) de comer.
Além disso, os canais de política e reembolso permitiram que a terapêutica digital acessasse os canais de pagamento tradicionais como qualquer outro tratamento médico. Organizações americanas, como o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) e ICER (Instituto de Revisão Clínica e Econômica), já reconhecem os DPPs on-line como sendo tão bons quanto os presenciais. Ainda, o Medicare (sistema de seguros de saúde gerido pelo governo dos EUA) já reembolsa esses tratamentos para idosos desde 2018.
É comum histórias de médicos da família, trabalhando em postos de saúde, lutando para conseguir que seus pacientes de baixa renda fossem ao hospital ou retornassem ao posto de saúde para tratamento semanal. Portanto, é tremendamente inspirador ver que, em poucos anos, a terapia digital aumentou significativamente o acesso aos cuidados mais do que se poderia tratar em várias vidas com um único médico.
Mas a segunda parte da promessa da saúde digital – eficácia – é mais ambígua. Programas de saúde digital de alta qualidade certamente mostram eficácia em estudos de pesquisa cuidadosamente controlados (nos quais participantes e análises são cuidadosamente escolhidos), mas a maioria dos programas tem menor eficácia quando implantados no mundo real. Por quê? Porque a maior força da saúde digital – acessibilidade – também inevitavelmente reduz as taxas de engajamento, sendo assim uma faca de dois gumes.
A questão irônica com o aumento do acesso aos cuidados por meio da terapia digital é que muitos participantes se inscrevem para tratamento on-line que nunca compareceriam a um tratamento presencial. Isso é ótimo se a razão pela qual eles não vieram pessoalmente é por causa da logística. Mas exigir que um participante compareça pessoalmente também filtra as pessoas desmotivadas e que não teriam seguido o tratamento.
Portanto, a desvantagem inadvertida de um processo fácil de inscrição on-line de 15 minutos é que ele inscreve pessoas que simplesmente querem "chutar os pneus" do programa, mas não querem realmente se envolver. Assim como a maioria dos consumidores se acostumou a baixar aplicativos gratuitos, testá-los uma ou duas vezes e nunca mais abri-los, a terapia digital geralmente apresenta taxas de desistência mais altas do que o normal quando comparadas com o mundo real. Para que uma terapêutica digital seja eficaz, ela deve estar mais alinhada com a psicologia. Aqui está o porquê:
Sou intensivista e lidamos com equipe multiprofissional e pacientes e familiares em seu limite, acabo experimentando uma linha entre Medicina e Psicologia, e a diferença entre os dois campos é menos sobre o tratamento do físico versus o mental e mais sobre uma distinção fundamental na filosofia. Embora o que se segue seja uma generalização, descobri que é uma estrutura útil para pensar sobre a relação médico-paciente em ambos os campos.
Na Medicina, o médico é o agente da mudança. Um paciente vai ao médico quando está doente e diz “Ei, doutor, estou com esse problema...” O médico descobre o que está errado e tenta curar o paciente, geralmente com uma pílula ou procedimento. Nessa relação, o médico é o agente curativo ativo e o paciente (desde que consinta) é um receptor passivo do tratamento. Essa dinâmica alimentou a obsessão dos americanos em primeiro pedir a "solução rápida" de pílulas curativas (por exemplo, medicamentos para perda de peso) ou procedimentos (por exemplo, cirurgia bariátrica) que tratam questões biopsicossociais complexas como puramente médicas.
Em contraste, na Psicologia, o paciente é o agente da mudança. Quando um paciente vai até o psicólogo e diz “Ei, doutor, eu tenho esse problema…”, ele também tenta descobrir o que está errado, e responde: “Eu não posso curá-lo, só posso lhe dar o conhecimento, habilidades e apoio para você se curar.” Esta é uma postura radicalmente diferente. Sem a motivação e o esforço do paciente, nenhum diagnóstico brilhante ou plano de tratamento lhes fará bem.
O insight sem mudança de comportamento é inútil. A parte importante é implementar esses insights em sua vida cotidiana. Quando se trata de tratamentos comportamentais, os pacientes devem ter o poder de cuidar de seus próprios cuidados, aderindo ativamente (vs. passivamente) às recomendações. o médico desempenha um papel importante como co-piloto (não o curandeiro) para ajudá-los a navegar pelas águas turvas à frente.
Assim, o futuro da terapia digital é selecionar melhor a motivação dos participantes por meio de uma 'Triagem Digital'. A ideia nunca é restringir o acesso ao cuidado a quem dele se beneficiaria. Mas como os tratamentos comportamentais dependem fundamentalmente da motivação do paciente para ter sucesso, eles devem garantir que os participantes estejam dispostos e sejam capazes de mudar.
Os psicólogos usam modelos como o transteórico para identificar em que "estágio de mudança" um indivíduo se encontra. A terapia digital é mais adequada para aqueles nos estágios posteriores de preparação e ação (em vez de pré-contemplação ou contemplação). Usando a análise preditiva, os psicólogos podem fazer uma triagem inicial dos participantes usando uma combinação de dados demográficos, questionários e comportamentais para prever quem tem maior probabilidade de se envolver e ter sucesso em um programa de mudança de comportamento.
Se os participantes não estiverem prontos para mudar, mas pensando sobre isso (ou seja, estágio de contemplação), eles podem ser inscritos em um acampamento base de "pré-intervenção" para prepará-los para a mudança ou colocados em uma lista de espera e fazer check-in novamente em alguns meses para ver se eles progrediram por conta própria. No entanto, para os pacientes que estão no estágio de pré-contemplação (ou seja, em negação sobre a necessidade de mudar em primeiro lugar), eles não são adequados para o tratamento até que se abram. Fazer essa "triagem digital" garantiria que recursos valiosos fossem direcionados para aqueles que precisam e estão prontos para usá-los.
Embora pareça contra-intuitivo erguer barreiras ao cuidado, para quem estuda a área, sabe que o investimento pessoal melhora o engajamento. Existem vários relatos de que quando pesquisadores tentam ajudar a realizar ensaios clínicos, fornecendo tratamento totalmente gratuito para diversas doenças (alguns até pagando aos participantes), o que acaba acontecendo é uma alta taxa de desistência, porque o tratamento era gratuito e não havia consequências em cancelar de última hora ou até mesmo não comparecer às consultas.
Ainda nesse exemplo, embora o tratamento fosse valioso (e teria sido caro fora de um estudo), muitos participantes não o levam a sério porque não lhes custou nada. Outros relatos ainda, no entanto, referem que assim que foi introduzido uma pequena taxa de co-pagamento/cancelamento (que permaneceu sendo gratuita devido à compensação pelas visitas de pesquisa), as taxas de cancelamento despencaram. Obviamente, os co-pagamentos não são a solução fácil para o envolvimento do paciente, mas essa experiência mostra que os pacientes com alguma "pele no jogo" garantem que os recursos sejam usados de maneira eficaz.
As empresas de terapia digital corporativa que dominam os mercados continuarão a ter grande impacto e crescer enquanto o reembolso continuar. Mas acredito que a inovação sairá cada vez mais da próxima geração de empresas de terapia digital orientadas para o consumidor. Isso porque os consumidores que estão ativamente buscando soluções e pagando do próprio bolso são intrinsecamente mais motivados e, consequentemente, podem obter mais sucesso em média com tratamentos comportamentais.
A oportunidade está com os empreendedores para criar soluções atraentes que deem a esse público altamente ativado o que eles querem e precisam.
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