Quantas vezes já discutimos e enumeramos as diferenças entre seres humanos e outros animais? Muito se diz sobre o animal racional, o único que fala, que ri, que chora, que sabe que eventualmente chegará ao fim. A própria definição de homo sapiens, o “homem que sabe”, muitas vezes não é o suficiente e desejamos ir além, pensando em um homo ludens ("homem que brinca"), em um homo faber ("homem que cria") e, mais recentemente, em um homo deus ("homem divino"). Agora, todas essas diferentes visões sobre o que somos e para aonde vamos têm uma coisa em comum: a narração.
Seres humanos contam histórias aos outros e a si próprios o tempo inteiro: da criança que brinca de casinha aos amigos que relembram uma história engraçada, da memória de uma viagem à fofoca do escritório, da notícia do Jornal Nacional à nova série do Netflix, estamos mergulhados completamente em narrativas.
Nós vivemos e revivemos histórias reais e imaginárias em nossas cabeças ininterruptamente e elas são, certamente, um pré-requisito indispensável para nossa existência como indivíduos e como grupo. Assim, talvez devessemos falar acima de tudo em um homo narrans, o “homem que narra”.
Sendo inerentes e imprescindíveis à vida humana, as narrativas preenchem um papel dúplice. Ao mesmo tempo que são a consequência direta daquilo que vivemos, desejamos ou tememos, as narrativas também são um motivador dessas mesmas coisas vividas, desejadas e temidas. Narrativas são tanto a causa, quanto a consequência. Elas refletem aquilo que acreditamos e buscamos como indivíduos e como grupo, mas também criam essas próprias crenças e buscas. Dessa forma, elas nos confrontam continuamente com o problema do ovo e da galinha. Um filme como Cidade de Deus retrata várias ânsias e medos ligados à violência que já existem e é, portanto, uma consequência. Mas, o filme também forma e dissemina essas mesmas ânsias e medos e é, portanto, uma causa.
As histórias que contamos moldam nosso olhar sobre o mundo e influenciam diretamente nossas ações. E é por isso que a Arte e a Literatura são profundamente relevantes.
Essa dupla função das narrativas tem sido muito estudada recentemente em pesquisas envolvendo neurociência, estudos literários e psicologia experimental. Em obras acadêmicas como Storytelling and the Sciences of Mind, de David Herman, ou até mesmo divulgativas como The Storytelling Animal, de Jonathan Gottschall, se discutem dezenas de estudos sobre os efeitos da leitura e da literatura em nossas vidas. Alguns efeitos são positivos: narrativas nos ajudam a desenvolver uma maior capacidade para empatia, gerenciamento de conflitos e sociabilização. Outros, no entanto, podem ser negativos: histórias que fazem apologia à violência e à tortura podem nos tornar mais intolerantes e extremistas, conforme argumenta Maggie Nelson em The Art Of Cruelty.
As doenças são um tema constante e recorrente em muitíssimas narrativas que perpassam não só a literatura e o cinema, mas também os discursos médicos e as notícias. Coletivamente, essas narrativas nos apresentam diversas formas de pensar sobre a vulnerabilidade do corpo que influenciam, por sua vez, nossa atitude quando adoecemos. Existe, portanto, uma relação direta entre a representação das doenças nas narrativas e a nossa reação a elas na vida cotidiana.
Em textos futuros, vamos refletir como essa complexa interação entre doenças e literatura afeta diretamente as nossas vidas e vamos discutir em detalhes exemplos práticos. Por enquanto, basta pensarmos no grande número de filmes que retratam a luta de pacientes contra o câncer e que são, com frequência, fonte de informação, coragem e inspiração. Mas também vale pensar em como a representação das doenças pode ser manipulada para iludir, como, por exemplo, muito do discurso que circunda a dengue no Brasil.
Embora escutemos continuamente que a água parada na plantas em nossos quintais é um fator crucial para a propagação da doença, a sua verdadeira causa epidemiológica é muito mais complexa e envolve de forma muito mais significativa a ineficácia de políticas públicas que promovam o acesso ao saneamento básico, a moradias de qualidade e à proteção do ecossistema. Do ponto de vista do sistema político, é cômodo criar e disseminar uma narrativa simplória, uma representação quase que mitológica da dengue, em que a própria população que sofre com a doença é responsabilizada pela sua disseminação. Assim, o paciente se transforma imperceptivelmente de “vítima” em “agressor”, algo que alivia pressões políticas e sociais e protege os verdadeiros responsáveis.
Em suma, a representação artística e midiática das doenças é um fator determinante na forma como nos relacionamos com a nossa saúde. Refletir sobre essas representações nos permite identificar e compreender diversas posturas individuais e sociais.
Essa é a grande contribuição que a literatura pode trazer àquilo que chamamos de Medicina Humanista ou Medicina Humanizada.
Nos vemos em breve.
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