Abro o prontuário médico, vejo o nome da próxima paciente e dou uma olhada em sua última consulta...
-Lucília*.
Olho a senhora que se levanta, acompanhada, e vem em minha direção.
-Boa tarde, tudo bem? Vamos lá?
Acompanho minha paciente e sua acompanhante até o consultório. Ao entrarmos me apresento e pergunto no que eu poderia ajudar.
-Minha perna doutor. Não consigo dobrar essa perna aqui.
Ela me fala mais sobre a dor em sua perna. Entre uma informação e outra pergunto sobre a pressão que estava 16 por 10 na triagem.
-A pressão da mãe tem estado mais elevada doutor. Era mais controlada, mas ela parou com o tratamento e agora fica assim.
-Por que a senhora parou Dona Lucília?
A máscara que a senhora em minha frente usava não foi capaz de esconder o sorriso dado por ela. Sigo com as perguntas enquanto tomo nota dos principais pontos. Até que questiono sobre como está a alimentação e atividades diárias.
-Ahh doutor... Depois que o pai morreu a mãe ficou triste, desanimada, quase não quer comer. Ela era bem alegre, cantava, dançava e agora fica quieta...
Paro de escrever. Olho nos olhos da senhora que está em minha frente. Ela me fita por alguns segundos antes de desviar o olhar. Questiono sobre a vacinação da Covid, sobre alguns outros pontos que me ajudariam no raciocínio de seu caso...
-Há quanto tempo estavam casados?
-Há 43 anos, meu filho.
-Bastante tempo. Sabe que eu sonho em atingir uma marca assim?
-Com a graça de Deus vai sim, meu filho.
-Amém! Mas, antes preciso casar né?
Ela ri. Termino as perguntas, faço o exame físico, passo o caso ao meu preceptor. Antes, a filha me pede um remédio para a tristeza que a mãe vem enfrentando. Alguns exames solicitados, tratamento para a hipertensão instituído.
-Por fim, queria falar sobre essa tristeza da senhora. Hoje eu não vou passar remédio pra ela. Sabe por quê? Porque é normal estar assim. Foram 43 anos juntos. Uma história construída. E fazem apenas dois meses que o companheiro da vida da senhora foi ficar ao lado do Senhor. Faz parte ficar triste, chorar, sentir saudades. Eu não posso imaginar o que a senhora está sentindo, mas eu posso dizer que estou aqui para ajudar a senhora a passar por isso.
Enquanto falo estendo minha mão sobre a mesa e ela a segura. Seus olhos enchem de lágrimas até que elas começam a brotar. Um choro sentido, um choro que demonstra saudade, um choro de alguém que perdeu seu amor.
A consulta se encaminha para o final. Mas, há algo diferente com essa paciente. Ela me lembra de quando conversei com Dona Ester*(leia aqui) pelo telefone e fui impedido de abraçá-la. Agora Lucília está ali em minha frente. Estamos vacinados, N95 na face, nenhum sintoma respiratório ...
-Posso dar um abraço na senhora?
Ela não me responde. Apenas abre os braços. Ela chora enquanto digo a ela que estará em minhas orações e que esse é o momento de sentir e de chorar.
Me despeço delas e quando elas saem do consultório sou capaz apenas de dizer a meu preceptor:
-Eu sei que não pode abraçar nesse momento, mas foi mais forte do que eu.
-Fique tranquilo. Faz parte do tratamento.
*Por questões éticas os nomes citados não correspondem a realidade.
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