Na quinta-feira passada (02/09) tive a honra, por meio do convite feito pelo Deputado Federal Zacharias Calil, de discursar em audiência pública na Câmara dos Deputados sobre o ensino médico brasileiro ao lado de grandes nomes da medicina que lá estavam representando instituições como o Ministério da Saúde, o Conselho Federal de Medicina, a Associação Médica Brasileira, entre outros.
Falar sobre o educação médica não é - com toda certeza - uma tarefa fácil, tendo em vista as inúmeras barbáries perpetradas ao longo dos últimos anos na educação dos nossos acadêmicos de Medicina. Para iniciar no tema gostaria, de antemão, de relembrar uma frase icônica, clássica e que representa muito bem o estudo das artes médicas.
Um médico canadense, famoso pelos seus pensamentos e ideais sobre a Medicina, conhecido como William Osler, certa vez proferiu uma frase que ficou marcada no tempo e na história da Medicina, norteando o que seria um ensino médico de extrema qualidade.
"Quem estuda medicina sem livros, navega num mar desconhecido, mas quem estuda medicina sem pacientes, não vai ao mar". Osler, William
Com essa frase, Osler traz para nós a importância, inalienável, da prática aliada aos estudos teóricos, ou seja, de nada adianta o acadêmico estar imerso num ambiente rico de conhecimentos teóricos se lhe falta a prática médica, o contato com o paciente para adquirir e aprimorar suas habilidades dentro da Medicina.
Infelizmente, quando se trata do ensino médico no Brasil, Osler ficaria extremamente decepcionado. E por que Osler ficaria decepcionado?
Bom, segundo estudo publicado em 2020 pelo Conselho Federal de Medicina, intitulado Radiografia das Escolas Médicas Brasileiras, 84% das instituições de ensino superior que oferecem vagas para medicina estão em municípios com déficit em pelo menos um de três parâmetros considerados ideais para o funcionamento de cursos desse tipo.
Os critérios são simples, alcançáveis e reais, entretanto não são cumpridos por quase 90% das instituições de ensino superior por mero descaso, por falta de valores éticos e morais na hora de elaborar um curso de tamanha relevância para a sociedade brasileira.
Os critérios mínimos, que não são cumpridos pela imensa maioria das universidades, são: oferta de cinco leitos públicos de internação hospitalar para cada aluno no município sede de curso; acompanhamento de cada equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF) por no máximo três alunos de graduação; e presença de hospital com mais de cem leitos exclusivos para o curso. Critérios esses, repita-se, objetivos, mínimos e alcançáveis.
Importante lembrar que estamos falando de acadêmicos de Medicina que em 6 anos estarão na linha de frente, ocupando cadeira nas diversas instituições de saúde, atendendo pacientes, prescrevendo medicações, aplicando condutas e, em última instância, salvando vidas. E que terão a sua formação extremamente prejudicada pelo não atendimento dos critérios exigidos, pois não terão o contato com o paciente - contato tão valorizado por Osler no século 19.
Um dado que choca é que das 163 escolas médicas abertas entre 2011 até o primeiro semestre de 2021, 65 - aproximadamente 40% - estão em 50 municípios que não cumprem nenhum dos requisitos mínimos considerados ideais para uma boa formação médica.
Outras 41,8% estão em 60 localidades que apresentam dois parâmetros insatisfatórios e 13,5% estão localizadas em 20 municípios que apresentam pelo menos uma inconsistência. O mais absurdo é que apenas nove instituições, das 163 escolas abertas nesse período, (5,5%) atendem todas as condições para seu funcionamento.
94% das faculdades de medicina não oferecem formação de qualidade segundo o CFM
Ainda, voltando ao critério de no máximo 3 alunos por equipe de Saúde da Família, um riquíssimo ambiente de prática para os estudantes, 54% das escolas médicas faltam equipes e sobram acadêmicos.
Os problemas são maiores nos municípios com menos de 50 mil habitantes, onde a densidade é de 8,2 alunos por cada equipe de Saúde da Família.
É como se fossem oito estudantes acompanhando uma equipe formada geralmente por um enfermeiro e um médico, atendendo em um ou dois consultórios e indo na casa dos pacientes.
No caso da visita em domicílio, imagine que o lar de uma pessoa, geralmente de baixa renda, será ocupado por 10 pessoas que, de certa forma, estarão invadindo a sua intimidade familiar, o seu espaço de convívio com os outros integrantes do seu núcleo. O paciente está sendo desrespeitado nesta situação. O constrangimento é notório, tanto por parte do paciente que tem literalmente uma multidão em sua residência, como por parte dos acadêmicos que também não queriam estar causando tamanho transtorno.
Veja que o ensino prático, neste exemplo, é extremamente prejudicado, pois com muita sorte 2 ou 3 acadêmicos, da soma de 8, terão algum contato mais próximo do paciente e irão de fato aprender algo que será utilizado na sua vida profissional. Os outros 5, que igualmente possuem o direito ao aprendizado de qualidade, estarão à margem do conhecimento, não tendo um efetivo contato com o enfermo.
Vale ressaltar que o atendimento ao paciente não se trata apenas de executar o que fora aprendido em sala de aula, ou seja o conhecimento teórico, muito mais do que isso, o contato com o paciente é indispensável para que o aluno aprenda a forma humana, íntegra, e respeitosa, de atender, de acolher, e instruir a população.
Outro ponto igualmente importante é a falta de leitos disponíveis para estudantes de medicina. Conforme já citado, é mandatório para uma boa prática médica a oferta de cinco leitos públicos de internação hospitalar para cada aluno no município sede do curso.
Na região Sul, infelizmente 84,5% dos municípios não atendem aos parâmetros defendidos pelo CFM, sendo a localidade com o pior resultado individual quanto ao número de leitos por estudante de medicina.
Muito dessa falta de leitos observada, com a instalação de cursos de graduação em Medicina em áreas remota que não oferecem as condições necessárias para uma formação médica plena, advém da reordenação da oferta de cursos de Medicina iniciada pela Lei 12.871/2013 - a lei que instituiu o Programa Mais Médicos.
De lá pra cá, e através de portarias subsequentes que foram flexibilizando ainda mais, as vagas saltaram de 20.522 em 2013 para 37.346 em 2019, ou seja, um aumento expressivo de 17 mil vagas em 6 anos. Vagas essas que na sua imensa maioria não atendem os critérios mínimos de formação.
Em última análise, o mais prejudicado é, e sempre será, o cidadão usuário do SUS que irá ser atendido por esses alunos que não tiveram a oportunidade de aprendizado completo pela falta de infraestrutura.
Sendo assim, são patentes a falta de qualidade de uma boa parcela dos cursos de Medicina no Brasil e a necessidade iminente de lutarmos por uma educação médica de excelência, com a interrupção do aumento desenfreado de escolas médicas sem a devida qualificação para funcionarem. Pois, de nada adianta aumentar exponencialmente o número de vagas ofertadas se não há infraestrutura suficientemente para formar médicos de qualidade.
Encerro com uma última frase, do aqui já citado médico patologista William Osler, em mais uma das suas dezenas de frases que descrevem a maneira correta de se aprender Medicina:
“O método natural de ensino começa com o paciente, continua com o paciente e termina com o paciente, usando livros e aulas como ferramentas para este fim”. Osler, William.
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Referências:
[1] 92% das faculdades brasileiras não observam critérios para oferecer formação de qualidade. Conselho Federal de Medicina. Acesso: 10/08/2021 https://portal.cfm.org.br/noticias/94-das-escolas-medicas-brasileiras-nao-observam-criterios-para-oferecer-formacao-de-qualidade/
[2] Radiografia das Escolas Médicas Brasileiras 2020. Conselho Federal de Medicina. Ed. 20 - 1 nov/2020.
[3] Equipes de saúde da família também são em número insuficiente. Conselho Federal de Medicina. Acesso: 10/08/2021 https://portal.cfm.org.br/noticias/equipes-de-saude-da-familia-tambem-sao-insuficientes/
[4] Quase 40% das escolas abertas a partir de 2011 estão em locais sem estrutura. Conselho Federal de Medicina. Acesso: 11/08/2021 https://portal.cfm.org.br/noticias/quase-40-das-escolas-abertas-a-partir-de-2011-estao-em-locais-sem-estrutura/
[5] SCHEFFER, M. et al., Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP, CFM, 2020. 312 p. ISBN: 978-65-00-12370-8