Apesar da percepção de que a maconha é inofensiva, existem evidências científicas que desafiam essa crença, e há muitas perguntas sem resposta sobre seu impacto na saúde do cérebro, de acordo com uma nova declaração científica da American Heart Association publicada em 10 de fevereiro no jornal Stroke.
Esta é a primeira declaração científica da Associação sobre cannabis e saúde cerebral. Ela é relevante, segundo o documento, pois o uso de maconha nos EUA está aumentando, principalmente entre adolescentes e adultos jovens, com cerca de um terço dos alunos da 12ª série e quase metade dos estudantes universitários que relataram uso de maconha em 2018. Além disso, o uso de maconha medicinal/ recreacional foi legalizado ou descriminalizado em muitos estados dos EUA nas últimas 2 décadas, e a concentração de tetrahidrocanabinol (THC, o componente psicoativo da maconha) em produtos de cannabis aumentou significativamente, de cerca de 4% em 1995 para 15% em 2018.
Os produtos químicos mais estudados na cannabis são o THC e o CBD. O THC é o composto da maconha que tem efeitos psicoativos. O CBD (canabidiol) tem propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias, sem alterar o funcionamento cerebral. Os potenciais benefícios terapêuticos do CBD continuam a ser investigados em ensaios clínicos.
A Agência Antidrogas dos EUA (DEA) e a Food and Drug Administration (FDA) classificam a cannabis como uma substância controlada da Lista I, juntamente com a heroína e o LSD, por ter um “alto potencial de abuso e pouco ou nenhum benefício médico”. Em contraste, o CBD é legal quando derivado do cânhamo, a mesma espécie de planta que a cannabis e contém menos de 0,3% de THC.
Para entender completamente o impacto potencial da maconha, é importante saber que o corpo humano produz naturalmente compostos chamados endocanabinóides que são semelhantes aos da maconha. Os endocanabinóides estão envolvidos na regulação de muitos processos corporais ao longo da vida (incluindo aprendizagem, memória, controle da dor e sono), e a ação dos endocanabinóides é essencial para o desenvolvimento cerebral pré-natal e para a maturação cerebral durante a adolescência.
Os endocanabinóides, assim como o THC, podem se ligar aos neurônios no cérebro por meio de moléculas chamadas receptores de canabinóides. Quando o THC ativa os receptores canabinóides no cérebro (concentrados em áreas relacionadas à cognição), pode interromper as ações normais dos endocanabinóides.
Estudos anteriores realizados em roedores indicam que a exposição prolongada ao THC interrompe a memória e o aprendizado e afeta o desenvolvimento e a maturação do cérebro de maneiras específicas se expostos em certos estágios da vida:
- Durante a vida pré-natal, um momento importante para o desenvolvimento do cérebro, o THC interrompe as vias de sinalização normais do sistema endocanabinóide e pode alterar o pensamento da prole, o comportamento emocional e a resposta ao estresse;
- Durante a adolescência, um momento importante para a maturação do cérebro, o THC altera a estrutura e a função dos circuitos cerebrais, particularmente em áreas envolvidas na cognição, regulação emocional e comportamento social (como o córtex pré-frontal e o hipocampo).
É mais fácil controlar o momento exato e a quantidade de exposição à maconha, bem como condições sociais e ambientais nas quais os animais vivem. No caso dos estudos de pesquisa em seres humanos, não é possível replicar parâmetros rígidos semelhantes. Assim, os resultados de estudos existentes em humanos são mistos, mas levantam preocupações semelhantes sobre o impacto da exposição à maconha na saúde do cérebro. Abaixo, os principais resultados:
- Enquanto usavam maconha ativamente, as pessoas demonstraram piores pontuações nos testes de condução ao usar maconha com THC dominante, em comparação com quando usavam maconha com dominante CBD ou sem maconha;
- Em adultos jovens que foram acompanhados por 25 anos como parte de um projeto de pesquisa de doenças cardíacas, as pontuações nos testes de memória verbal diminuíram em correlação com mais anos de exposição autorrelatada à maconha;
- Problemas psicológicos e pior função cognitiva são mais comuns em crianças (idade média de 9 anos) cujas mães relataram usar maconha durante a gravidez;
- O uso de maconha durante a adolescência tem sido associado ao desbaste em uma área do cérebro envolvida na cognição (o córtex pré-frontal), com maior exposição à maconha associada a mais desbaste. No entanto, outros estudos não detectaram diferença;
- Mudanças estruturais no cérebro são visíveis em alguns estudos comparando quem faz o uso de maconha com quem não usa. Houve redução de áreas cerebrais importantes na orquestração de pensamentos e ações, ou diminuição do volume em uma área do cérebro importante para a memória. Outros estudos que compararam testes cognitivos e imagens cerebrais não encontraram diferenças entre pessoas que usam ou não maconha;
- Pessoas que usam cannabis têm um risco aumentado (17% a mais em relação ao outro grupo) de acidente vascular cerebral isquêmico. O derrame também é mais comum entre quem usa maconha. Os estudos indicam 24% a mais de probabilidade neste caso.
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Referências
- Testai FD, Gorelick PB, Aparicio HJ, Filbey FM, Gonzalez R, Gottesman RF, Melis M, Piano MR, Rubino T, Song SY; American Heart Association Stroke Brain Health Science Subcommittee of the Stroke Council; Council on Arteriosclerosis, Thrombosis and Vascular Biology; Council on Cardiovascular and Stroke Nursing; Council on Lifestyle and Cardiometabolic Health; and Council on Peripheral Vascular Disease. Use of Marijuana: Effect on Brain Health: A Scientific Statement From the American Heart Association. Stroke. 2022 Feb 10:STR0000000000000396. doi: 10.1161/STR.0000000000000396. Epub ahead of print. PMID: 35142225. Disponível em https://www.ahajournals.org/doi/epdf/10.1161/STR.0000000000000396
- How does cannabis use affect brain health? Caution advised, more research needed. American Heart Association Scientific Statement. Disponível em https://newsroom.heart.org/news/how-does-cannabis-use-affect-brain-health